Objetos cortantes e... Feminismo? - DELTA | Cultura online

Objetos cortantes e... Feminismo?

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Título original: Sharp objects
Autora: Gillian Flynn, a mesma de Garota Exemplar.
Ano: 2015

Sinopse: Recém-saída de um hospital psiquiátrico, onde foi internada para tratar a tendência à automutilação(...), a repórter de um jornal sem prestígio em Chicago, Camille Preaker, tem um novo desafio pela frente. Frank Curry, o editor-chefe da publicação, pede que ela retorne à cidade onde nasceu para cobrir o caso de uma menina assassinada e outra misteriosamente desaparecida.
Desde que deixou a pequena Wind Gap, no Missouri, oito anos antes, Camille quase não falou com a mãe neurótica, o padrasto e a meia-irmã, praticamente uma desconhecida(...) Entrevistando velhos conhecidos e recém-chegados a fim de aprofundar as investigações e elaborar sua matéria, a jornalista relembra a infância e a adolescência conturbadas e aos poucos desvenda os segredos de sua família, quase tão macabros quanto as cicatrizes sob suas roupas.  

Agora, precisamos conversar sobre esse livro.
Quando comecei a ler, instintivamente me identifiquei com a protagonista. Jornalista e independente, basicamente o que almejo para minha vida. Mas, esse não foi o principal motivo de ocorrer a identificação. Aparentemente, a personagem tem uma pegada feminista. A palavra feminismo, inclusive, aparece umas duas ou três vezes no livro. E foi isso que me chocou.
Eu explico, na pequena cidade onde Camille (a protagonista) nasceu, era costume das mulheres não almejarem mais que um marido e construir sua própria família. E Camille, insatisfeita, busca mais. Sem pretensão de casar, foca na carreira, ganha pouco, mas é independente e com casa própria. E o tempo todo no livro, ela explicita o quão isso é importante para ela. Gostaria de deixar claro também que a autora se considera feminista. Até ai tudo ok.
Comecei aficar espantada com essa passagem do livro;
"-Uma vez, no oitavo ano, uma garota ficou bêbada em uma festa do ensino médio e quatro ou cinco caras do time de futebol fizeram sexo com ela, meio que passaram de um pro outro, isso conta?
- Camille, claro que conta. Você sabe disso, certo?
-Bem, eu não sabia se contava como violência explícita ou...
-É, eu consideraria um bando de vagabundos estuprando uma menina de 13 anos de como violência explícita, certamente consideraria.
(...)
- Não tenho dúvidas de que isso é errado, Richard; só estou tentando entender seu critério de violência. (...)
- Fico surpreso por ela não ter sido obrigada a se desculpar por eles terem a estuprado. Oitavo ano. Isso me deixa enjoado.
-Então é a idade que faz disso um estupro - falei.
-Seria um estupro em qualquer idade.
- Se eu ficasse bêbada além da conta esta noite, perdesse a cabeça e fizesse sexo com quatro caras, isso seria estupro?
-Legalmente não sei, dependeria de muitas coisas, como seu advogado. Mas eticamente, sim.
-Você é machista.
-O quê?
-Você é machista. Estou farta de homens liberais de esquerda praticando discriminação sexual sob o disfarce de proteger mulheres da discriminação sexual.
(...)"
QUE? Eu não posso explanar o quão assustada fiquei com esse diálogo. Sexo com a pessoa bêbada, não é consensual. As faculdades mentais da pessoa ficam claramente comprometidas, e os corpos, muitas vezes, vulneráveis. Não importa o motivo que levou a pessoa a beber, fazer sexo com ela bêbada é estupro. Caso não concorde, há o texto no site Dr. Drauzio Varella, que você encontra aqui. Há também o texto da Sara Joker, que você encontra aqui, relatando uma história de abuso sexual em caso de embriaguez, seguida da opinião. Nesse último há esse trecho que achei marcante: "O sexo, em situação de embriaguez ou drogas não é consensual(...) Me espanta muito uma sociedade que tenha em seus valores, que a culpa de ser estuprada enquanto dorme ou enquanto se está dopada é da mulher que sofreu o abuso sexual. Não quero que esta sociedade me diga o quanto eu devo beber, e qual é o limite razoável e não estuprável de uma mulher." . 
É preciso se preocupar portanto com o trecho do livro. Livros também são formadores de opinião e dizer que o sexo não consentido é machismo porque é uma discriminação sexual, não faz sentido. Podemos fazer sexo com quantos quisermos, a partir do momento em que haja nosso consentimento, com nosso cérebro e sentidos não estando afetados. Há sim situações e situações, as pessoas ficam bêbadas de formas e intensidades diferentes. Mesmo que estejam em um relacionamento duradouro, a mulher pode não estar sentindo-se confortável e consentindo. Na dúvida, não estupre! Ela pode estar com o julgamento comprometido e também vulnerável, como disse anteriormente. Violência com a mulher bêbada está, sim, enraizado na sociedade, a ponto das pessoas terem dúvidas se é estupro ou não. 
Há outro trecho do livro, igualmente preocupante: 
"Não consegui decidir se havia sido maltratada. Por Richard, por aqueles garotos que tiraram minha virgindade, por alguém. Eu nunca realmente estivera do meu lado em qualquer discussão.Eu gostava da maldade da frase do Antigo testamento Ela teve o que merecia. Algumas vezes as mulheres merecem."
Suspiro. Eu tive vontade de abraçar a personagem e dizer que "Não! As mulheres nunca merecem ser maltratadas ou vítimas de abuso sexual". É entendível que esses pensamentos passem pela mente de quem sofreu abusos, se há parcela de culpa, enfim. Mas as últimas duas orações me chocaram. Não desconstruir depois a culpabilização da vítima me chocou ainda mais. Há homens lendo esse livro que podem concordar que as mulheres as vezes merecem. Há mulheres que leram o livro e tem dúvidas se elas têm parcela de culpa pelo abuso sofrido. Não. Não importa como a mulher se comporte, o que tenha ingerido, não é provocação, não é desculpa, não é motivo para abusar sexualmente dela. Sexo precisa haver consentimento, caso contrario é crime. 

Fora essas duas passagens, eu adorei o livro. É tenso, te deixa curioso para descobrir quem é o assassino e outros mistérios deixados em aberto ao longo do livro. Eu fiquei particularmente agoniada, porque não gosto muito de ter que lidar com assuntos como abusos e automutilação. Soube desse livro através da turnê da intrínseca, evento ocorrido na livraria Cultura no ano de 2015. Fiquei curiosa por ser um livro justamente escrito com intuito de mexer com o psicológico do público-alvo. O livro cumpre maravilhosamente sua tarefa. Apesar das -necessárias- problematizações, recomendo. 

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